quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O inventado e o irredutível: Resenha de “A invenção das ciências modernas”, de Isabelle Stengers.


não é necessário negar a singularidade das ciências para torná-la passível de discussão
Isabelle Stengers


A leitura do livro de Isabelle Stengers, A invenção das ciências modernas, no contexto da disciplina Comunicação, simetria e abordagens pós-identitárias, ministrada pelos Profs. Renzo Taddei e Felipe Sussekind no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, veio precedida do estudo de Jamais fomos modernos, de Bruno Latour. Isto acabou, de algum modo, orientando minha leitura do texto que, de outra forma, teria permanecido um enigma, em função do elevado volume de referências dos campos da filosofia e história das ciências, ainda pouco familires para mim. Esta resenha, portanto, não se pretende um inventário das questões abordadas por Stengers, mas procura, modestamente, seguir algumas pistas deixadas pelos movimentos do pensamento da autora que, a despeito de suas singularidades, parecem ecoar a emergência de uma nova epistemologia.

Duas questões irão mobilizar nossa leitura: Em primeiro lugar, a identificação do solo comum sob relativistas e críticos radicais; em segundo lugar, a identificação de dois projetos políticos distintos a partir da diferença entre ironia e humor.

O livro de Stengers adota como ponto de partida a emergência de um campo de conhecimento que ficou conhecido por uma série de nomes, como Estudos sociais da ciência, Antropologia das ciências, Science Studies, entre outros. Na base destes novos saberes estaria um projeto de ultrapassagem de qualquer possível separação entre ciência e sociedade. De um lado, portanto, temos os sociólogos “relativistas”, que não têm por projeto a “denúncia” da ciência, mas o simples “exercício de seu ofício”. Tal ofício ancora-se no pressuposto de que há uma diferença fundamental e instransponível entre o que determinada prática social propõe de si e a leitura empreendida pelo sociólogo. Neste caso, Stengers evoca o que chama de “argumento da retorsão”. A afirmação de que toda e qualquer ciência consiste em um projeto social, segundo tal argumento, significa ler um conjunto heterogêneo de práticas desde o interior de um projeto, também científico, que é o projeto da sociologia. A questão que tal argumento desencadeia consiste em saber como, enquanto ciência, a sociologia escaparia das objeções que lança sobre todas as demais ciências.

O discurso relativista pronunciado por certa corrente sociológica não é, entretanto, o único esforço empreendido pelo campo emergente dos Estudos sociais da ciência. Há ainda, segundo a autora, um segundo movimento, que ela chama de “crítica radical da ciência”, e que exemplifica a partir da crítica da tecnociência e da crítica feminista da ciência. A primeira crítica consiste em identificar a racionalidade científica enquanto um dispositivo meramente instrumental, que traduziria todos os seus avanços em desenvolvimentos técnicos. A crítica feminista, em gesto similar, identifica a racionalidade científica à preponderância dos valores masculinos na sociedade. A crítica feminista radical, diferentemente de perspectivas feministas mais antigas, que viam em ciências localizadas (medicina, história e biologia, por exemplo) o presença de valores masculinos como a competitividade, por exemplo, reivindica o a totalidade das ciências enquanto “produto social sexuado”.

A objeção lançada por Stengers ao movimento de crítica radical das ciências consiste em que, apesar de consistir em um movimento de resistência, estas orientações conferem ao cientista um lugar privilegiado na definição daquilo que pode sua ciência, de quais seriam os limites que não interessa, social e politicamente, transpor. Ora, adverte Stengers, “os cientistas, os técnicos e os experts não estão em questão, estão à espera, como todos os demais, dos limites do poder de expansão de uma dinâmica que os define para além de suas intenções e de seus mitos” (Stengers: 2002, p. 21). Outro ponto frágil na sociologia das ciências, este com respeito à crítica radical mas não aos relativistas, é o fato de que, ao adotarem um vetor de crítica a priori, seja a técnica (no caso da tecnociência) ou os valores masculinos (no caso da crítica feminista), a crítica radical esquiva-se das controvérsias e das práticas propriamente científicas, bem como da heterogeneidade do campo científico, marcada, frequentemente, por uma divisão entre vencedores e vencidos.

Ora, o gesto de Stengers de crítica das críticas à ciência parece articular-se de um modo que nos remete às filosofias de Henri Bergson e Gilbert Simondon, além de ecoar uma série de proposições presentes na obra de Bruno Latour. Em Matéria e Memória, Henri Bergson trata de revelar o solo compartilhado por duas perspectivas epistemológicas rivais: o realismo naturalista e o idealismo subjetivista. Diante da querela sobre a compreensão da natureza da percepção, organizada em torno de um par que propõe o mundo exterior ou a interioridade psicológica, respectivamente, como fontes de conhecimento, Bergson ergue uma terceira via, que ultrapassa as duas primeiras, revelando o que ambas compartilham (uma incapacidade de pensamento dos processos perceptivos em um tempo não espacializado), introduzindo um dinamismo em suas análises e ultrapassando a equação percepção-conhecimento, que marcou a filosofia moderna. Gilbert Simondon, leitor de Bergson, mimetiza o gesto do filósofo ao revirar o substancialismo e o hilemorfismo enquanto perspectivas que dariam conta dos processos de individuação. Tanto a perspectiva substancialista quanto a hilemórfica, nos mostra Simondon, partem do ser individuado, esquivando-se do que precisa efetivamente ser explicado: os processos de individuação, a ontogênese. Bruno Latour, à diferença dos dois mas obtendo efeitos similares, problematiza o adjetivo “social”, enfatizando que este nada explica, mas precisaria ser ele próprio explicado, a partir de um conjunto heterogêneo de atores que constituem redes. Stengers parece herdar esses movimentos do pensar quando, no que apresentamos até aqui, ela revira perspectivas concorrentes a respeito da ciência, mostrando que nenhuma delas, nem relativistas, nem críticos radicais, abordam a ciência propriamente dita, enquanto um conjunto de práticas concretas que, a despeito de efeitos de poder e modismo, operam no interior de uma racionalidade de tipo muito próprio, conforme sua retomada dos escritos de Galileu nos mostram no desenrolar do livro.

O segundo movimento do pensamento de Stengers que nos interessa evocar encontra-se na passagem intitulada “A invenção política das ciências” e está ancorado em uma distinção entre ironia e humor, que a autora vai buscar na obra de Steve Woolgar. O desenvolvimento deste tópico por Stengers busca dar conta da dimensão política que se encontra na gênese da distinção entre ciência e opinião e dos critérios que autorizam a intervenção, exclusivamente por parte dos cientistas, nos debates científicos (proposição de critérios, prioridades e questões). Neste ponto, Stengers parece chegar ao cerne da singularidade das ciências. Isto torna-se visível quando a autora explicita que a distinção entre os cientistas e toda sociologia das ciências não pode ser rebatida sobre o solo da política e propõe que se faça antes uma abordagem política da construção da diferença entre ciência e não-ciência, nos mesmos moldes a partir dos quais o “politólogo” pôde “acompanhar as consequências, na vida política, da invenção grega da política como problema” (Stengers, 2002, p. 83). O paralelo entre política e ciência, no entanto, não implica aqui a redução de um ao outro.

Paradigmática do gesto sintetizado acima é a obra de Bruno Latour Jamais fomos modernos. Latour teria conseguido, segundo a autora, não opor às “verdades construídas pelas ciências uma outra verdade de maior poder – mesmo que na forma da negação a priori de toda verdade que não se reduza a uma crença como as outras” (Stengers, 2002, p. 84). O humor, à diferença da ironia, é convocado aqui para sublinhar a forma de fazer história a que Stengers está se filiando. A leitura relativista das ciências, segundo Woolgar, é “irônica” na medida em que supõe “uma referência (estável ou dinâmica) a uma transcendência”. Isto significa que o sociólogo ou historiador irônico será aquele que se propõe a desvelar as intenções das ciências, colocando-se em uma relação de distância e exterioridade que lhe assegura uma capacidade judicativa mais lúcida e universal em relação às práticas e autores que estuda na condição (não problematizada) de objeto. À diferença da ironia, o humor seria uma arte da imanência. Não pode ser uma transcendência o elemento que permite estabeler o critério de separação entre ciência e não-ciência. A posição privilegiada, distante e de fora, não encontra lugar em um projeto político baseada no humor. Novamente o politólogo é convocado como exemplo: “A situação é a mesma que a do politólogo que sabe que seu problema não teria nenhum sentido se os gregos não tivessem inventado uma 'arte da política'. Ele mesmo é produto desta invenção, que ele não pode, por conseguinte, reduzir a nada. Todavia está livre para pôr em história esta invenção” (Stengers, 2002, p. 85).

O princípio de simetria que é mencionado algumas vezes no texto de Stengers encontra, a partir desta diferenciação, duas possibilidades de realização. Ou bem é-se irônico e a simetria realiza-se como redução (ciência é política), ou se elimina a transcendência, a distância e a lógica identitária através de uma política imanente do humor, traduzindo a simetria em vetor de incerteza. Ironia e humor, tal como comparecem no livro de Stengers, parecem traduzir uma longa querela, que se encontra no cerne da epistemologia das ciências humanas, consignada, por exemplo, na tese proposta por Hans Georg Gadamer em seu Verdade e Método. Ali, Gadamer apresenta uma dificuldade inerente à escrita da história enquanto prática hermenêutica. Ou se vive a verdade histórica, coincidindo com sua feitura no tempo do agora, ou se cria uma distância de modo a assegurar metodologicamente seu caráter científico. A leitura de Stengers, bem como daqueles de que ela é herdeira e que foram convocados no percurso em direção à viabilidade de uma abordagem não-identitária dos processos de comunicação, coloca em xeque a própria interpretação como estratégia privilegiada, política ou epistemologicamente, de lidar com o mundo.


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